Um objectivo claro como a água
Agosto 25, 2015Laura Carniello, sob os auspícios de Qin Chong, encontra-se com mais dois outros gigantes da arte Chinesa contemporânea, Li Tiejun e Zhang Yu, para refletir sobre o conceito de ‘Preto e Branco’ de Qin Chong; e é recompensada com uma fascinante e perspicaz visão de requinte, visto através do prisma idiossincrático do pensamento Oriental.
Desde a origem dos tempos, filósofos e escritores lidaram sempre com a questão das nossas origens, perguntando-se sobre a essência primitiva da vida humana. Alguns pensaram que, para conseguir uma perspetiva da nossa condição original, a humanidade devia voltar ao seu berço, mas raramente concordam com a localização e as características deste ambiente ancestral. Outros acreditam que não precisamos de pesquisar sobre esse lugar, mas devíamos cuidadosamente sondar o nosso ser mais íntimo, procurando a nossa natureza primária bem dentro de nós. O bem conhecido artista visual, curador artístico e diretor da Galeria de Arte 99, Li Tiejun, tem as suas ideias próprias sobre isto e frequentemente pergunta-se «Onde é que pertencemos?» É por esta razão também que voluntariamente aceitamos participar no debate iniciado por Qin Chong, partilhando comigo os seus pensamentos sobre «Preto e Branco».
Tiejun tem um curriculum impressionante. Depois de ter estudado na prestigiosa Academia de Arte Lu Xun, na província de Liaoning, muito rápidamente entrou em contacto com a arte contemporânea no estrangeiro. De 1990 a 1997, esteve na Bolívia, depois passou três anos em Espanha. Apesar desta intensa experiência no estrangeiro, de 2008 em diante, Li Tiejun mudou o seu rumo artístico, entrando no estado mais profundo de meditação. Nos seus desenhos a tinta podemos observar a sua grande preocupação pela sociedade contemporânea e sentir o seu desejo constante de encontrar liberdade. Na sua opinião, um artista, durante o processo criativo, deve focar-se numa direção conceptual precisa, mantendo uma única e clara posição individual. É por isso que admira o poder alusivo evidente em cada trabalho de Qin Chong, as suas obras, as suas ideias e a forma particular como olha para a vida contemporânea. Da mesma maneira, as pinturas de Li contêm uma atitude de preocupação e responsabilidade para com o mundo que o rodeia. Tiejun acredita que «um artista deve enriquecer a sua vida de um modo responsável, oferecendo ao altar da sociedade o resultado inteiro da sua experiência de vida». Atendo-se a estes princípios, acolheu com prazer a oportunidade de contribuir pessoalmente para o debate em curso no multifacetado tema Preto e Branco. Primeiro, como referido acima, o conteúdo intelectual do seu trabalho indica à partida uma prontidão para pensar em temas contemporâneos da nossa sociedade e, evidentemente, na técnica de ‘ink-wash’ escolhida pelo artista como um meio que naturalmente o leva a considerar o significado desse tópico tão abrangente. Atualmente, Li Tiejun está a expandir o conceito de «nevoeiro» (“wu” 雾), que se tornou o centro do seu trabalho e da sua linguagem artística, representando a síntese do seu pensamento nos últimos dez anos.
Diz: «Na atualidade, desde que estamos perante um processo de padronização mundial e globalização, a invenção do termo ‘Preto e Branco’ e a promoção de uma pesquisa internacional sobre ele, mostra-nos seguramente que ganhou uma nova e significativa importância. Já não é um assunto exclusivamente confinado ao mundo oriental, mas é um meio cognitivo, que transcende as divisões e contradições, por vezes, estereotipadas entre as culturas ocidental e oriental». Em seguida continuou centrando-se na herança cultural do seu país: «Para chegarmos ao fulcro da civilização oriental temos que lhe encontrar a sua essência. Lidando com assuntos do quotidiano estamos conscientes que não são tão simples como parecem ser, mas em vez disso têm de ser analisados através do prisma do antigo conceito chinês o ‘Taiji’, nomeadamente a coexistência de dois opostos consubstanciados na contradição emblemática ‘Preto e Branco’. No contexto artístico, um artista contemporâneo deve ser um membro ativo da sociedade, sendo este conceito útil por forma a penetrar a realidade completamente». Finalmente, para conseguir perceber melhor como esta maneira de pensar está enraizada na sua tradição, Li recorre a outra imagem, mencionando um dos mais importantes clássicos do pensamento antigo chinês (classificada entre os «Quatro Livros» do Confucionismo), o Zhong Yong 中庸, numa tradução liberal, a “Doutrina do Significado”. Diz: «De acordo com os princípios estabelecidos no Zhong yong, a humanidade pode alcançar um equilíbrio natural na vida».
Li Tiejun sabe muito bem que a arte contemporânea é nada mais do que o resultado das mudanças que acontecem no meio social, cultural, político e económico em que vivemos. Além do mais, acredita que a mudança é a base de qualquer desenvolvimento. Um país que não seja assediado por problemas, raramente produz arte contemporânea amadurecida e significativa. Por conseguinte, começando este debate sobre «preto e branquismo» pode-se afirmar ser um tema estimulante e uma abrangente fonte de inspiração para muitos artistas. «As pessoas, hoje em dia, elaboram o seu pensamento de uma forma muito complicada e ignoram o ‘Essencial’» diz Tiejun. «Se é verdade que as nossas vidas são um contínuo ’trabalho em progressão’, as suas bases permanecem inalteráveis. Para mim, Preto e Branco não são só cores, mas representam um conceito mais complexo. Assim, elas simbolizam a origem de todas as regras naturais e têm sido sempre a dicotomia que permite ao homem resumir as verdades do mundo. Além disso, Preto e Branco é a epistemologia de como o homem compreendeu a ideia em si da arte através da história. Resumindo, a razão porque o Preto e o Branco têm uma carga tão significativa, em particular neste tempo, é que este par de opostos está rigorosamente ligado à origem e Essência da existência da humanidade».
Li Tiejun reconhece que o desejo de Qin Chong de promover esta pesquisa não está só ligado à sua clara direção artística, mas à crítica dos seus pares e ao mundo material que criaram. O enorme progresso que o nosso incessante desenvolvimento científico, tecnológico e económico produziu melhorou significativamente a qualidade das nossas vidas, mas privou muitas outras dos seus verdadeiros valores, afastando-nos do alimento do nosso mundo espiritual. Esta desorientação enganosa moderna causou o declínio da natureza comum da humanidade.
Li Tiejun observa: «As questões sobre as quais a humanidade mais pondera estão relacionadas com a existência, tais como ‘De onde vimos? Quem sou? Para onde vou?’ Para enfrentar esta questão, devíamos ultrapassar a aparência e olhar para a essência das coisas. Todos os fenómenos são ilusórios. Chegar à raiz das coisas significa retirar o véu da aparência e explorar a sua natureza interior. Uma mesa, por exemplo, é uma peça de madeira, considerando a sua condição atual, mas na verdade o seu ser original está numa semente».
Resumindo, Li considera que «Preto e Branquismo» incorpora hoje o significado da ‘Verdade’. É um produto da civilização oriental mas, ao mesmo tempo, oferece uma ponte intercultural e de comunicação com o Ocidente. De facto, o conceito de equilibrar e harmonizar duas ideias opostas pode ser importante para os intelectuais ocidentais empenhados em descobrir o que se encontra entre dois polos aparentemente incompatíveis. Há trinta anos, quando a China se abriu aos mercados, a influência da cultura ocidental tornou-se cada vez maior; no presente, os paradigmas do pensamento ocidental parecem ter aceitado que «doutrina do significado» é inerente à sabedoria chinesa. O Ocidente precisa de um novo caminho de aproximação à realidade, um que levará a uma liberdade sem limites. Tive depois o prazer de entrevistar Zhang Yu e ele mudou o curso do debate de forma fascinante considerando que, além do Preto e Branco, se deve olhar para o que fica entre uma e outra cor.
Zhang Yu é o mais marcante e certamente um dos maiores expoentes revolucionários da onda experimental de desenho a tinta. O seu espírito inovador leva-o sempre ao desenvolvimento de ideias artísticas e permite-lhe cada vez mais deixar a sua escola original de pintura e a moda universal de desenho a tinta que antes representou. Também ganhou distância mais recentemente do grupo de desenho a tinta abstrato. Presentemente, a sua linguagem criativa, a sua exploração conceptual e as suas teorias sobre arte ganharam já uma maturidade e definição, e, consequentemente, os seus trabalhos são reconhecidos internacionalmente.
A arte de Zhang desenvolveu-se através de um processo de «subtração»: começou com uma forma de usar materiais para transmitir ideias abstratas e, finalmente, chegou a um ponto onde explora as possibilidades dos materiais em si. Zhang gosta de se referir à sua aproximação como «indo para além da pintura». Por outras palavras, o artista está a cortar a relação direta com o seu trabalho, tentando redescobrir uma espécie de ‘pré-linguagem’. Só resta uma interação, nomeadamente, a resposta da tinta , água e papel em relação ao espaço.
Zhang Yu publicou recentemente um novo livro «Art Makes Me», que clarifica o seu rumo artístico, que está num constante processo de exploração. As suas crenças criativas estão melhor contidas na declaração seguinte: «A arte está para além de categorias, técnicas e materiais». O que realmente comunica o sentido do seu trabalho artístico é a prática, o espaço, o tempo e todo o processo a isso associado.
Quanto ao conceito de ‘Preto e branquismo’, Zhang Yu acredita que pode ser tratado como uma questão filosófica com a qual qualquer artista que trabalhe em preto e branco esbarra, especialmente quando fora da sua amplitude de conhecimento. Mas qual é a questão fundamental deste «ismo» de acordo com Zhang Yu? Antes de partilhar connosco o seu pensamento, ele observa que «Depois das políticas da reforma e a abertura prosseguidas pela China nos anos 80, a cultura ocidental inundou literalmente o nosso país, até ao ponto de alterar a mentalidade do nosso povo do modo mais profundo. As nossas estruturas nacionais parecem ter permitido, senão encorajado esse processo, adotando um tipo de assimilação de ‘engolir tudo’. Nos últimos anos, os artistas aperceberam-se que finalmente tinha chegado o tempo de voltar a trabalhar em assuntos tradicionais, há muito negligenciados. Assim, aqui estamos, a abordar um tópico importante». Na opinião de Zhang Yu, o debate iniciado pelo «Preto e Branquismo» ainda tem de resolver a relação natural entre preto e branco e o yin-yang oposto conceptual. Pessoalmente ele acredita que esses dois pares não são equivalentes e a relação entre eles ainda não foi definida. Além disso, acha ainda que «não é tudo sobre os dois polos, mas também devíamos considerar o que está naquele ‘meio’ sobre o qual ninguém se debruçou até agora». Zhang Yu continua, «pensei longa e arduamente sobre este ponto de mudança e penso que pode ser ligado às diferentes lógicas especulativas no Ocidente e Oriente. Por todos estes motivos, penso que este conceito diz respeito a cada esfera de conhecimento, o concreto também é importante. A necessidade de encontrar um meio termo de passagem é uma das minhas prioridades».
No mundo da criação artística, em que manifestações visuais exibem de infinitas maneiras um ponto de vista e interiorização pessoal de pensamentos e sentimentos, é possível refletir em questões profundas recorrendo a palavras. Contudo, neste caso, Zhang Yu, que usa a riqueza da sua língua materna na perfeição, tenta explicar os seus princípios criativos: «O desenho tradicional chinês a tinta está também enraizado na dicotomia do preto e branco, mas devemos compreender que ‘Preto e Branquismo’ não é nem o equivalente a ‘desenho a tinta’, ou ‘pintura monocromática’, nem sequer corresponde à simples ligação entre preto e branco. Antes de mais, devemos considerar estes dois opostos como um todo, não como partes divergentes. Há dois provérbios na história da pintura e caligrafia chinesa que nos dizem ‘para olharmos o preto como branco e o branco como preto’ e, ao mesmo tempo, ‘preto é preto e branco é branco’. Portanto, estou convencido que o que realmente importa não é a tensão entre dois polos, mas a necessária exploração e contemplação do espaço intermédio sem limites que eles abarcam. Por esta razão não penso que a expressão ‘Preto e Branquismo’ seja um termo isolado da ideia de ‘técnica artística’». Por fim, Zhang Yu afirma: «Preto não é importante, branco não é importante. A água é a única coisa que conta. A água é o elemento de suporte à humanidade, é a fonte da vida, a origem de todos os seres vivos. A nossa cultura baseia-se na água, enquanto que a cultura ocidental é fundada na pedra. Por isso a água, a terra e a pedra são indivisíveis».
A água foi sempre um elemento essencial dos trabalhos artísticos de Zhang Yu. A sua instalação ‘Água-tinta’ , por exemplo, transmite o poder transformador e as propriedades perenes da água. Essa obra surgiu a partir das mudanças graduais que a água “imprimiu” aos outros materiais. Os rolos de papel pendurados nas paredes têm as bordas inferiores a tocar num tanque de água. Em resultado disso, a água gradualmente desaparece, mas ela ainda existe no corpo dos rolos de papel, como podemos ver pelo modo como o aspeto do papel mudou visivelmente. No entanto, a água continua a existir de outra forma, mesmo se, à primeira vista, aparenta ter desaparecido. As criações de Zhang Yu são concebidas como a soma de diferentes elementos, não são só o reflexo da sua cultura, mas também o resumo dos variados problemas que as pessoas encontram no quotidiano no mundo contemporâneo. O artista acredita que a procura do que se encontra entre as duas extremidades intercambiáveis permite-nos investigar uma maior variedade de possibilidades e encontrar mais soluções. Esta poderá ser a abordagem correta para superar a tendência de enfatizar as diferenças entre a China e o mundo ocidental, valorizando as colaborações para encontrar um espaço partilhado e, assim, um modo de melhor comunicar. A ‘internacionalização’ e o processo de ‘ultrapassar a distância cultural’ são ambos caminhos chave que caracterizam o novo rumo da arte contemporânea.
Zhang Yu deixa-me com uma observação sobre o futuro desenvolvimento da arte internacional, em que felizmente o debate do ‘Preto e Branquismo’ tem um papel ativo: «Hoje em dia muitos artistas internacionais não conseguem produzir um trabalho excelente porque há uma escassez geral de assuntos e ideias sobre os Gque possam meditar, por causa da crise espiritual que passamos. A arte abstrata também enfrenta um desafio difícil para conseguir manter o seu poder de inovação vivo. O que nos sobra? Que hipóteses há para que a arte não feneça no futuro? Tenho realmente esperança que este debate venha a criar novas oportunidades para reflexão. Certamente, os países ocidentais introduziram no passado alguns conceitos importantes na nossa maneira de pensar, mas na nossa sociedade atual global, quando os intercâmbios culturais se tornam cada vez mais frequentes, talvez esta discussão seja bem vinda pelos estudiosos ogcidentais como ‘uma lufada de ar fresco’ que sopra a partir do nosso país. Ou, talvez, nem aconteça e permanecerá como um tema oriental. Afinal, os ocidentais estão tão habituados a considerar o preto e o branco como cores, que não lhes é fácil considerá-los como um tema filosófico, como os chineses o fazem. De qualquer modo, duvido que a cultura ocidental possa tirar muita inspiração do nosso pensamento tradicional, particularmente se nos queremos concentrar na ideia de uma ‘verdade do meio’, esquecendo o conceito de opostos predeterminado. Na minha opinião este é um ponto precioso de viragem para os artistas chineses também. Por isso, vamos nos concentrar no que está entre preto e branco e não no ‘ismo’. A expressão ‘ismo’ criada no século passado, devia ser tabu para nós artistas contemporâneos, porque nos pode prender no paradigma do modernismo».
E assim, Zhang Yu afirma que, à luz deste novo conhecimento partilhado, a arte do desenho a tinta não terá as mesmas características dantes e espera que, gradualmente. se transforme num meio de expressão internacional que, livre de constrangimentos e regras rígidas, terá sucesso na exibição de uma visão única no mundo concreto que nos rodeia.