Ainda Podemos?
Setembro 27, 2015Indies, hipsters e um compositor “dos anos 80”.
Outubro 7, 2015Isabel Moreira tornou-se uma figura proeminente na política portuguesa. A Dantemag questiona-a sobre se as dramáticas mudanças que as medidas de austeridade impostas a tantos europeus tornam as constituições destes países incapazes de lidar com estas perturbações numa sociedade moderna?
por Mario Moniz Barreto
Constituições são o pilar sobre o qual qualquer Estado que proclame viver num estado de Direito, assenta e são um tema de discussão em Portugal e em qualquer outro lugar onde um profundo programa de austeridade tenha sido implementado. Isto faz com que o Tribunal Constitucional se torne o foco de muita discussão política relativamente ao facto de as leis aprovadas pelo Parlamento, onde os partidos do Governo estão em maioria, e assinadas pelo Presidente, mesmo que relutantemente, estarem, ou não em conformidade com a Constituição de 1975.
APOIAR FERVOROSAMENTE O SISTEMA
Ninguém melhor para debater este assunto senão uma das mais conhecidas constitucionalistas do nosso país. Isabel Mayer Moreira, deputada do Partido Socialista, e uma ativista dos direitos humanos demonstra, enquanto laica, um discurso quase religiosamente fervoroso contra aquilo a que chama “austeridade estúpida” imposta pelo que ela considera ser uma contradição neoliberal que quer simultaneamente reduzir serviços do estado e puritanamente regular a liberdade de cada um.
Isabel, de 39 anos de idade, filha de um ilustre político conservador e académico em Relações Internacionais, alcançou a ribalta política durante dois dos mais difíceis debates que o país teve nas últimas décadas, quer com a descriminalização do aborto, ou a concessão aos “same sexers” (como Gore Vidal o diz) dos mesmos direitos que os héteros têm no casamento-ou pelo menos a maioria deles (uma vez que o acesso à parentalidade está ainda vedado). Em ambos os debates ela ganhou.
Durante esses momentos de grandes e, por vezes, pouco elevados confrontos de pontos de vista a elegantíssima Isabel -eu sei que ela não me perdoará por o dizer-falou sem medo e de uma forma tão assertiva que esmagou os seus oponentes: desde o católico conservador, até ao supostamente académico moderado. Não é por isso surpresa que continue a distinguir-se no parlamento como uma defensora dedicada da constituição, como é rápida a lembrar-me, com alguns custos para a sua carreira política.
Encontrámo-nos num fim de tarde suave numa ainda solarenga Lisboa nos jardins que rodeiam o edifício do Parlamento.
Comecei por lhe perguntar se ainda acredita que temos uma constituição enquanto tal, ao que responde “sim, evidentemente”. Acredita que a Constituição da Nação é moderna, talvez uma das mais modernas da Europa. Isabel continua, explicitando que quando a legislação e os orçamentos tinham medidas julgadas inconstitucionais, os princípios que violavam não tinham que ver com medidas programáticas previstas na constituição como tal, mas com princípios básicos tais como a “ proporcionalidade” ou “confiança”. Princípios, reafirma Isabel, presentes em todas as constituições de estados democráticos do mundo e que ‘só um tonto’ pensaria em reverter, ou diminuir.
Insatisfeito com esta primeira resposta, insisto: “Este governo não elaborou um único orçamento que não tivesse que ser rectificado face a uma fiscalização pelo Tribunal Constitucional, além de ter produzido inúmeras outras reformas legislativas que tiveram o mesmo fim. Apesar de tudo isto vivemos ainda sob a mesma constituição?”
Isabel Moreira insiste que sim. Evidentemente, é extraordinário ver tantos casos ser dirigidos com sucesso ao Tribunal Constitucional. E no entanto o sistema funciona. O Estado de Direito prevaleceu. Parlamento e Governo tiveram que reformular as disposições legislativas definidas como inconstitucionais, trabalhando de acordo com as regras.
Talvez o aspecto mais incomum, na visão de Moreira, é a forma como o Tribunal Constitucional se encontrou no centro da ribalta política e como, durante tanto tempo, o chefe de estado e outros órgãos de soberania se recusaram a agir, demitindo-se, de alguma maneira, das suas funções de soberania.
Isabel Moreira acrescenta: “Os acórdãos do Tribunal Constitucional até acabaram por ajudar o Governo, evitando grandes cortes nas pensões de reforma e nos ordenados dos funcionários públicos. Isto fez com que o consumo aumentasse e com isso provocou algum crescimento”.
Com ironia, Isabel diz que “ a Constituição não mudou, não foi revista, a forma como é interpretada também não mudou, a forma de fiscalização da sua observância também não se alterou face a tantas questões declaradas inconstitucionais”. Por isso, aponta ela, a única coisa que tem de mudar é o Governo, oxalá nas próximas eleições em outubro de 2015.
NOVOS DIREITOS, VELHAS QUESTÕES
Como nos demais países, também em Portugal, os direitos dos cidadãos estão inscritos na Constituição. Isabel identifica “novos”, como “velhos” direitos humanos que poderiam ter uma melhor formulação e, com isso, proteção. Também acredita que a Constituição como uma “coisa viva” é adaptável a quase todos os contextos e tempos.
Esta é uma área que lhe é querida. Isabel tatuou no braço a data em que a legislação sobre casamentos entre pessoas do mesmo sexo foi finalmente aprovada no Parlamento.
Mas um assunto ainda mais importante e urgente para Isabel Moreira é a nova realidade europeia que brevemente terá que ser abordada constitucionalmente. A armadilha da pobreza em que caíra tantos jovens e velhos, formados e outros menos qualificados. Os desempregados, mas também os que trabalhando, muitas vezes em horário parcial, não têm direito ao salário mínimo que, em Portugal, é cerca de 500€ por mês. O direito a uma vida digna deveria ser mais um dos direitos que, ao ser incluído de forma mais explícita nas constituições, significa, como outros direitos, e princípios fundamentais, uma forma de obrigar as instituições a agir, por ser um imperativo constitucional e legal.
Durante estes debates, Isabel falou sem medo e de uma forma tão assertiva que esmagou todos os seus oponentes: desde o católico conservador, ao professor catedrático que se apresentava como moderado. Não é por isso surpresa que continue a distinguir-se no Parlamento como uma defensora dedicada até da Constituição, como é rápida a lembrar-me, com alguns dissabores para a sua carreira política.
O empobrecimento da classe média, juntamente com um maior declínio dos mais pobres entre os mais pobres, em tantos países onde a desigualdade cresce, como Piketty tão precisamente expõe na sua obra “Capital”, é uma consequência de, como Isabel nos diz, ”um programa ideológico de políticas públicas, inspirado por economistas falhados que atacam pensionistas, funcionários públicos e as pessoas mais pobres cuja sobrevivência depende dos magros subsídios e que, em Portugal, não foram isentas de ‘cortes selvagens’ mesmo os que auferiam tão pouco como 600€ por mês”.
Sinto mais uma vez que o sangue de Isabel ferve. Está duplamente insatisfeita: este caminho é injusto e ineficaz. Fica perplexa como é que ainda há quem acredite que a maior flexibilidade em despedir alguém e outras medidas que tornaram as forças de trabalho da Europa do sul as menos regulamentadas do mundo, possa levar a uma maior prosperidade. Afirma que os trabalhadores protegidos são altamente produtivos em países como a Alemanha, ou a Dinamarca, ou a Holanda.
A VERIFICAÇÃO PRECISA DE SER (RE)VERIFICADA?
O Tribunal Constitucional tende a ser passivo na forma como assegura o respeito pelos princípios básicos na sua ação fiscalizadora. A questão tem de lhe ser apresentada antes que os juízes do Palácio Ratton se possam pronunciar. De outra forma arriscaríamos subverter estas verificações e equilíbrios entre órgãos de soberania criando “governos judicialistas”.
Isabel defende o sistema que está implementado em Portugal. O qual não é tão diferente de muitos outros países no mundo. O Tribunal Constitucional tem os seus juízes nomeados por diversas instituições com muita discussão política. Continua indicando que, como por exemplo nos Estados Unidos, alguma coisa acontece no momento em que um juiz toma posse- deixa a sua antiga lealdade política à porta. Tal resulta em algumas decisões surpreendentes, nomeadamente um republicano poder ser mais progressista no sentido das suas deliberações que um Democrata.
Quando confrontada com o que o juiz do Supremo Tribunal dos EUA Stevens advoga na sua recente obra “Seis Alterações: Como e porquê devíamos mudar a constituição”, Isabel pensa que das seis questões que ele vê como prioritárias, duas teriam relevância na Europa; distorção dos distritos eleitorais com propósitos raciais para privilegiar o partido no poder (“racial gerrymandering”), e o “privilégio do soberano” (pelo qual o estado e os serviços estatais têm maior proteção da lei que companhias privadas). Serviços de cobrança de impostos agressivos é precisamente uma das áreas em que Isabel pensa que o Estado tem já poder a mais.
A ASCENSÃO DOS EXTREMISTAS
As eleições legislativas na Europa nos últimos anos trouxeram algumas amargas surpresas: o crescimento de partidos de extrema direita e de outros movimentos populistas, desde o Reino Unido , à Hungria, da Holanda à França, de Itália à Grécia.
Podem ou devem as constituições fazer mais para impedir esta tendência?
Não, de acordo com Isabel. Ela acredita que as constituições já fazem o suficiente. No caso de Portugal os partidos políticos fascistas estão banidos. Em 1975 o país emergiu de quarenta e oito anos de um regime de extrema direita. Até hoje todos os grupos políticos têm que se registar no Tribunal Constitucional para que lhes seja permitido concorrer a eleições. Há um processo de verificações: desde o número de apoiantes a uma análise dos estatutos do partido. Nestas três últimas décadas só um partido político foi declarado inconstitucional.
A deputada preferiria ver-nos todos a lidar com o crescimento dos movimentos extremistas não por meios legais, mas através da ação política- denunciando estas organizações pelo que são e mobilizando os eleitores contra eles. É preciso tirar a pele de cordeiro a pessoas como Marie Le Pen!
A QUESTÃO DA SEGURANÇA
Denunciantes como Assange, Manning ou Snowden expuseram o trabalho intrusivo de agências como NSA com uma incrível falta de respeito pelo nosso direito à privacidade. Mais ainda, demonstraram a ineficácia dos dados recolhidos para neutralizar ameaças à nossa segurança. Não devíamos, pois, exatamente por isso, questionar se os nossos direitos foram suspensos?
Isabel queixa-se que “há um grupo de políticos que se intitulam de liberais e que sabem tão pouco o que ser liberal significa em relação a este assunto. Perdem a perspectiva da distinção entre liberdade positiva e negativa”. O que tem a ver com quão longe a nossa liberdade pessoal pode chegar antes de começar a afectar terceiros. Isabel não pode portanto aceitar a intromissão estatal fundamentada numa espécie de presunção de que somos todos culpados de qualquer coisa, por violar o princípio de proporcionalidade, apenas e tão só porque é mais fácil e simples fazer deste modo. Pelo contrário, como Isabel afirma, “a intransigente defesa dos direitos, liberdades e das nossas garantias exige-nos que deixemos a simplicidade de lado”. Concorda, no entanto, que qualquer solução para este problema deve ser objecto de um acordo de âmbito internacional.
DA SEGURANÇA À MORAL, UM CURTO PASSO
Isabel pensa que existem características comuns entre os processos de “perda de liberdade” e dos de “obtenção da liberdade”. Ambos são feitos de pequenos passos, o que, claro, torna mais difícil aos cidadãos, quer o entendimento de qual o sentido em que as coisas caminham, quer a sua oposição a esse mesmo caminho. Isabel exemplifica recorrendo ao conceito de “estado paternalista”, mediante o que aconteceu aos fumadores, que são tratados como criminosos, moralmente fracos, poluidores do ar que as outras pessoas respiram. Isabel que por acaso fumava dois maços de cigarros por dia e mudou para cigarros electrónicos, está furiosa pela forma como estas pessoas também são perseguidas. Por quê? Porque funcionários da saúde, acreditam que fumar, ou melhor, vaporizar um cigarro electrónico dá um mau exemplo em público. As autoridades de saúde, preferem “ver um fumador morto a um vaporizador feliz!”
É como se agora todos tivéssemos a obrigação de nos educarmos à custa da nossa liberdade e da nossa singularidade: “e que é um processo que evolui, com passos não tão lentos num sentido totalitário”. O Estado quer ser um “modulador de comportamentos”, recorrendo a restrições, taxas e proibições e negando, onerando ou tornando odiosas certas opções, restringindo assim o direito de escolha.
Precisamos por isso, segundo o insuspeito liberal John Rawls de “recalibrar” o que aquele autor definia como “ideia de interesse público”? Isabel responde com eloquência: “O Estado não me pode defender de mim mesma”.
POST SCRIPT
Acabo a minha entrevista com Isabel perguntando-lhe se chegamos ao fim da história ou se estamos à beira de uma série de acontecimentos explosivos? Ela estremece ao ouvir isto. Acabou de ler as memórias de Stefan Zweig, sentiu-se em completa consonância com o relato dos dias do fim do Império Austro-Húngaro, com a forma como as pessoas então não se apercebiam do que estava para vir e com o imenso retrocesso que as décadas seguintes significaram. Isabel, embora mantenha uma visão entre o otimismo mitigado e um realismo defensivo, teme os cada vez mais evidentes paralelos entre Viena e Bruxelas. Os catastróficos resultados da queda de Viena seriam semelhantes se o projeto de integração europeia falhasse.
Sentindo a crescente falta de esperança e otimismo, Isabel, apesar de tudo, continua a acreditar no seu dever de lutar contra a desigualdade e estes programas ideológicos baseados na austeridade que desgastam a nossa liberdade.
Como comunidades, precisamos de alguns valores de ética comuns. Temos de retomar o princípio da solidariedade geracional. Precisamos de recuperar a ligação entre as classes socioeconómicas e dizer que os pobres não são responsáveis pela situação em que estão. Temos que voltar a ler o que a maior parte das constituições sempre proclamou e lembrar aos políticos o que em muitos casos foi esquecido e, noutros, deturpado.
Afinal que outros documentos, senão as constituições, escritos por nós com o nobre objetivo de definir como viver numa sociedade civilizada, como nos relacionamos entre nós e com o Estado; e como nos podemos proteger num e noutro caso são redigidos com tamanha felicidade e beleza?
“Life, Liberty and the Pursuit of Happiness!”.
Ou “Liberté, Égalité et Fraternité”.
Photos by Jorge Ferreira